A decisão do Supremo Tribunal de que medidas cautelares determinadas
pela Justiça contra parlamentares podem ser derrubadas pelos Legislativos, tomada há menos de um
mês, já tem levado Câmaras Municipais e Assembléias pelo país a revogar
decisões contra vereadores e deputados acusados de corrupção.
O caso mais famoso é o do senador Aécio Neves (PSDB), que teve a obrigatoriedade de
recolhimento noturno revogada e o mandato restituído pelos colegas logo depois
do julgamento no Supremo, mas ao menos três decisões semelhantes já
beneficiaram políticos locais. E outras estão a caminho. Em um dos casos, um
deputado estadual foi libertado da prisão e reassumiu o mandato após votação
dos colegas.
A
sucessão de decisões judiciais com efeitos anulados pelo Poder Legislativo a
partir da decisão do Supremo já gerou reações do Judiciário e do Ministério
Público. A Procuradoria-Geral da República (PGR) já recorreu em um caso,
enquanto entidades que representam os juízes vêem “violação da independência
entre os poderes” e preparam ações no STF para estancar o impacto da
determinação dos ministros.
Por seis votos a cinco, o Supremo decidiu, no dia 11 de outubro, que medidas
como o afastamento do mandato e o recolhimento domiciliar noturno, previstas no
Código de Processo Penal, só podem ser aplicadas a parlamentares se houver
autorização de seus pares. A ação foi pautada pela presidente do STF, ministra
Cármen Lúcia, após a crise gerada com o Senado pela decisão que afastou Aécio
do mandato e determinou que ele permanecesse em casa à noite. O Senado, logo em
seguida à decisão do Supremo, anulou as restrições impostas ao tucano.
Os dois deputados estaduais do país que estavam afastados do cargo pela
Justiça, um em Mato Grosso e outro no Rio Grande do Norte, já foram
beneficiados. No caso mato-grossense, a Assembléia Legislativa revogou, por
unanimidade, a prisão preventiva do deputado estadual Gilmar Fabris (PSD),
investigado no esquema de corrupção do estado e que havia sido detido em
flagrante por obstrução à Justiça, após ordem do ministro do Supremo Luiz Fux.
Ele foi filmado recebendo uma propina de R$ 50 mil entregue por um integrante
do governo estadual — as imagens foram levadas ao STF pelo ex-governador e
agora delator Silval Barbosa.
A resolução aprovada pelos parlamentares foi encaminhada ao sistema
penitenciário sem passar pelo Judiciário e serviu como alvará de soltura.
Fabris deixou a prisão no dia 25 e também foi autorizado a retomar o mandato. A
secretaria estadual de Justiça e Direitos Humanos do estado afirmou, na
ocasião, que “não cabe ao sistema penitenciário questionar decisão”.
— Direito não é ciência exata. A orientação da procuradoria da Assembléia
foi de que a decisão do Supremo está valendo, então devíamos votar a prisão. Se
depois a Justiça disser que tem que voltar para a prisão, é outra história,
vamos respeitar — diz o presidente da Assembléia de Mato Grosso, Eduardo
Botelho (PSB). Para a defesa de Fabris, a decisão “atende a todas as exigências
constitucionais”.
O Ministério Público Federal (MPF) pediu novamente a prisão de Fabris, e
o caso será analisado na quarta-feira em sessão do Tribunal Regional Federal da
1ª Região (TRF-1), para onde o processo foi enviado após o desmembramento. O
desembargador Ney Bello, relator do caso, afirmou que está analisando “os votos
e a decisão do STF para saber se a Corte estendeu aos deputados estaduais” o
que foi decidido.
O acórdão da decisão do STF ainda não foi publicado, mas o ministro
Alexandre de Moraes, responsável pelo texto, informou, via assessoria, que vai
disponibilizar o documento na semana que vem.
PGR RECORRE
No Rio Grande do Norte, a Assembléia Legislativa derrubou, no último dia
24, o afastamento do deputado Ricardo Motta (PSB). Acusado de participar de
esquema de desvios de até R$ 19 milhões do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável do Rio Grande do Norte (Idema/RN), ele fora afastado do mandato
pelo Tribunal de Justiça do estado para preservar as investigações.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, já recorreu. Ao
pedir ao STF a anulação da decisão, ela escreve que o decreto dos deputados
potiguares “viola o livre exercício do Poder Judiciário” e é “perigoso
precedente de absoluto desrespeito à decisão judicial”. Segundo a
procuradora-geral, “a autoridade das decisões judiciais é garantia da afirmação
do Judiciário como poder, em um modelo de tripartição e de freios e
contrapesos. Outro fundamento constitucional igualmente caro é o da preservação
do pacto federativo. O decreto legislativo em exame fere estes alicerces
constitucionais”.
O procurador-geral da Assembléia do Rio Grande do Norte, Sérgio
Ferreira, que avalizou a decisão dos deputados, diz que seguiu a decisão do
Supremo. Ricardo Motta já voltou às atividades normais como deputado e
inclusive participou de votações nesta semana. Seu advogado defende que a
Constituição dá aos deputados estaduais as mesmas garantias fornecidas aos
federais.
Não há dados centralizados sobre o
número de políticos afastados dos cargos pela Justiça nos mais de 5.500
municípios brasileiros, mas O GLOBO identificou ao menos um caso em capital e
outras iniciativas, ainda não concretizadas, em andamento Brasil afora.
Também no Rio Grande do Norte, a Câmara
Municipal de Natal suspendeu o afastamento do vereador Raniere Barbosa (PDT),
que presidia a Casa quando foi impedido pela Justiça de exercer o mandato,
investigado sob suspeita de desvio de verbas. A decisão do plenário, publicada
no Diário Oficial, afirma que a Câmara “comunicará ao Superior Tribunal de
Justiça e ao juízo da 7ª Vara Criminal da Comarca de Natal/RN que decidiu pelo
retorno do vereador Raniere Medeiros Barbosa”.
Procurado, o presidente em exercício da
Casa, vereador Sueldo Medeiros (PHS), não quis dar entrevista, mas, em nota,
recuou e afirmou que a decisão seria “submetida ao Poder Judiciário”. O
Tribunal de Justiça do estado, no entanto, informou que foi apenas avisado da
decisão sobre a volta do vereador. O STJ também recebeu o ofício e deverá
discutir o caso na terça-feira, quando a Quinta Turma vai analisar um habeas
corpus apresentado pela defesa de Barbosa. Em setembro, o ministro Reynaldo
Soares da Fonseca havia mantido o afastamento.
O advogado Erick Pereira, que defende o
vereador Raniere Barbosa, afirmou que, em função da decisão do STF, não há
“descumprimento ou afronta a decisões judiciais” no retorno do parlamentar ao
mandato.
‘DESCUMPRIMENTO EPIDÊMICO’
Um ministro do STF disse ao GLOBO que a
decisão da Corte pode enfraquecer “muitíssimo o Judiciário”.
— Pode gerar o uso epidêmico do
descumprimento de decisões judiciais, aumentando a sensação de impunidade. A
decisão (do STF), infelizmente, dá margem a essa utilização promíscua desse
instrumento (revogação de atos da Justiça) e surgem essas afrontas à dignidade
da Justiça — analisa.
Para a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), há “usurpação da atividade do Poder Judiciário”.
— Estamos levantando em todos os
estados os casos para entrar no Supremo. O Legislativo está até expedindo
alvará de soltura, é uma temeridade. É uma violação da independência entre os
poderes — afirma o presidente da AMB, Jayme de Oliveira. — O próprio STF, no
caso do governador (Fernando) Pimentel (Minas Gerais), havia decidido que não
há necessidade de consultar as Assembléias (para a Justiça receber denúncias
contra governadores).
O presidente da Associação de Juízes
Federais do Rio e Espírito Santo (Ajuferjes), juiz Wilson Witzel, afirmou que
deputados estaduais e vereadores “não têm nenhuma autoridade para rever
decisões do Judiciário e estão fazendo uma revolução constitucional”.
Já a presidente da Associação dos
Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), a juíza Renata Gil,
manifestou preocupação com um conseqüente “enfraquecimento do Judiciário”:
— O descumprimento das decisões provoca
enfraquecimento do Judiciário, que é o balizador dos outros poderes.
Não é apenas nas assembléias estaduais
ou em capitais que o efeito cascata da decisão do STF pode ser visto. Na região
do Vale do Rio dos Bois, no Sul de Goiás, Acreúna tem 21 mil habitantes,
segundo o IBGE. Em 31 de agosto, a Justiça afastou dos cargos o prefeito Edmar
Alves Neto (PSDB) e o vereador Pablo Ferreira (PTB), acusados de fraudar
licitações para contratação de veículos para transportar estudantes e pacientes
na cidade. Na semana que vem, a Câmara Municipal votará a revogação do
afastamento do vereador, segundo o presidente da Casa, vereador Julinho da
Arantina (SD).
— O vereador chegou a ficar preso, por
30 dias. Vou pautar a votação do afastamento na semana que vem. O parecer da
procuradoria da Câmara é para que a Casa vote — disse o vereador, reconhecendo
que os colegas devem derrubar o afastamento. — Ah, acho que é provável, né?
Especialista em Direito Constitucional,
o professor da FGV-SP Oscar Vilhena afirma que a decisão do STF abriu o caminho
para que Assembléias e Câmaras atuassem desta maneira:
— Acho que decisão do Supremo foi
errada, mas abriu esse precedente. É conseqüência de ato equivocado. Nesse
sentido, Assembléias e Câmaras estão agindo de acordo com a decisão.
Fonte: Jornal O Globo